coisas que ficaram fora da gavetta. e não deviam.

Um manifesto de Diana Duarte:


o manifesto que me pediram para escrever

O facto infinitamente improvável de haver vida apaixona as pessoas ou, se quisermos paganizar e teologizar também e, já agora, admiti-lo de uma forma bonita, o milagre de haver vida apaixona as pessoas. A ciência e a religião são crenças que salvaguardam que o humano - quem crê - precisará de ser salvo. 

Independente da raça ou da fé, esta idea de salvação é amplamente utilizada pelo governamentalismo para justificar e manipular a aceitação de actos que de outra forma não teriam razão de ser. 

As cruzadas e a inquisição salvaram a fé. Hitler salvou a Alemanha. Bush salvou o Iraque. Portugal foi salvo pela União Europeia e agora é resgatado pelo FMI e um dia será salvo por D. Sebastião. 

É caso para dizer: salve-se quem puder.

Quer se dedique às escrituras, aos artigos científicos ou à inferência da irracionalidade em tudo o que o rodeia, o humano acabará por concluir que a racionalidade e perseverança da sua raça, embora tendo permitido atingir consideráveis marcos na ciência e na técnica, não foi suficiente para gerar o que é justo. E não está à altura do milagre ou improbabilidade fabulosa que a vida representa. Há avanços imperativos noutras áreas imprescindíveis para que o humano assegure a sobrevivência das espécies e do meio. Para que evolua. O avanço destas áreas ditas não técnicas processa-se a um ritmo tão lento quanto o outro é atabalhoado.

É por isso que a ideia de salvação, para além de inevitável, tem a função de alertar para o estado agravado de desafinação do humano e para as dissonâncias que daí advêm. A a literatura ilustra prodigiosamente este quadro de estagnação da natureza humana. O que há de comum nos clássicos e por que é que ainda são intemporais?... 

O humano ainda está dentro da caverna de Platão. Não tem culpa de existir... ou será que tem? Édipo não é culpado... ou é?

A salvação faz parte do colectivo. É que o humano afinal é um colectivo. É por isso que o Édipo é um arquétipo e é por isso que todo o humano está, ou esteve, na mesma caverna.

Ser... ou não ser? Viver... ou não viver? A existência em si é uma fatalidade bem mais grave do que a morte. São escolhas inevitáveis que se desarrocham em outras até ao culminar da dita cuja. 

A literatura espelha, quer se trate de uma obra de arte ou de uma de uma obra de artifício, esta fatalidade. As obras são úteis para educar, para comover, para aprender a pensar. Ou para manipular, contrariar, chatear. Um bebé não sabe falar ou andar e já é sócio do benfica, baptizado e ostenta brincos nas orelhas. Só muito tarde se aperceberá, esperançosamente, que as suas escolhas foram feitas com base em outras escolhas que fizeram por ele, por sua vez condicionadas por tudo o resto. A literatura pode ajudar a salvar esse humano, que por sua vez poderá ajudar a salvar o humano.

Num próximo estágio de evolução [por oposto a regressão] do humano, não haverá lugar para a literatura. A própria estrutura da linguagem sofrerá mutações drásticas. Mas por enquanto é ainda extremamente necessária para catalisar essa mesma evolução. A imaginação não será eternamente algo que só se pode ler ou assistir, as vidas serão ricas, prolíficas, excitantes, detalhadas, aventurosas e comoventes como os grandes clássicos. 

Ser e viver: a literatura fornece filtros para apurar o supra-significado destes termos.  A primeira procura do significado faz-se por intermédio da linguagem e depois faz-se por intermédio do ser. A literatura é escolha, cada palavra é uma escolha. Cadeias de escolhas interdependentes até ao culminar do texto. 

Este manifesto é um apelo a escolhas responsáveis e realmente contributivas. Escolhas conscientes e com um propósito. Pode ser inevitável que espelhem mediocridade, é o que o humano tem e por isso precisa de se salvar de si próprio tal como ainda é. Mas não inevitável que sejam medíocres. A beleza consegue suceder no seio da decadência e deve ser cultivada até conseguir proliferar, dentro e fora das páginas.

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